domingo, julho 31, 2005

Araña de plata

LA LUNA




La Luna es araña
de plata
que tiene su telaraña
en el río que la retrata



jose juan tablada


pindaro

Uma amabilidade






"Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos;
devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem"



Fernando Pessoa



pindaro

sexta-feira, julho 29, 2005

Umas chinelas de Túnis

" RUBIÃO fitava a enseada, - eram oito horas da manhã.

Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa.

Cortejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista.

Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.

"Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas", pensa ele. Semana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que parecia uma desgraça..."



Machado de Assis
("Quincas Borba")



pindaro

De morais aflições

Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórrido negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares,cós Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores
-E meu cioso pranto... oh Jove, oh nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.


Bocage


pindaro

Palpa de amor





Urselina gentil, benigna e pura,
Eis nas asas subtis de um ai cansado
A ti meu coração voa alagado
Em torrentes de sangue, e de ternura;

Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura
Seu miserável, doloroso estado,
Que nas garras da morte já cravado
A fé, que te jurava, inda te jura:

Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,
Põe-lhe os mimosos dedos na ferida,
Palpa de Amor a vítima inocente:

E por milagre deles, oh querida,
Verás cerrar-se o golpe, e de repente
Em ondas de prazer tornar-lhe a vida.


bocage



pindaro

Com o tempo faz mudança a sorte avara





Com o tempo o prado seco reverdece,
Com o tempo cai a folha ao bosque umbroso,
Com o tempo para o rio caudaloso,
Com o tempo o campo pobre se enriquece,

Com o tempo um louro morre, outro floresce,
Com o tempo um é sereno, outro invernoso,
Com o tempo foge o mal duro e penoso,
Com o tempo torna o bem já quando esquece,

Com o tempo faz mudança a sorte avara,

Com o tempo se aniquila um grande estado,
Com o tempo torna a ser mais eminente.

Com o tempo tudo anda, e tudo pára,

Mas só aquele tempo que é passado
Com o tempo se não faz tempo presente.




luis de camões


pindaro

O brilho picante dos seus dentinhos

" Fui eu que lhe ofereci o prato, onde a Ernestina colocara os pastéis.

Ela quis saber o meu nome. Tinha um sobrinho que também chamava Teodorico; e isto foi como um fio sutil e forte que veio, do seu coração, enrodilhar-se no meu.

- Por que é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva ali a um canto? - disse-me ela, rindo.

O brilho picante dos seus dentinhos miúdos fez desabrochar, dentro em mim, uma flor de madrigal.

- É para não me tirar daqui de ao pé da menina nem um instantinho que seja.

Ela fez-me uma cócega lenta no pescoço.

Eu, aboborado de gozo bebi o resto do Madeira que ela deixara no cálice.

A Ernestina, poética, e cantando o fado, aninhou-se nos joelhos do Rinchão.

Então a Adélia, revirando-se languidamente, puxou-me a face - e os meus lábios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido, mais profundo que até aí abalara o meu ser.

Nesse doce instante, um relógio medonho, com o mostrador fingindo uma face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o mármore de uma mesa de mogno, dentre dous vasos sem flores, começou a dar dez horas, fanhoso, irônico, pachorrento.

Jesus! Era a hora do chá em casa da Titi!

Com que terror eu trepei, esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as vielas escuras e infindáveis que levam ao Campo de Santana!

Em casa, nem tirei as botas enlameadas.

Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de balbuciei:

- Titi...

Mas já ela gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos:

- Relaxações em minha casa não admito! Quem quiser viver aqui há de estar às horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, enquanto eu for viva! E quem não lhe agradar, rua!"


Eça de Queirós



pindaro

quinta-feira, julho 28, 2005

Tem o bilhar, tem a tipóia, tem a batota, tem a mulherinha...






"- E olha, Teodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te sejam necessárias mais ceroulas... Encomenda, filho, encomenda, que graças a Nossa Senhora do Rosário tenho pos­ses, e quero que vás com decência e te apresentes bem lá na sepulturazinha de Deus!...

Encomendei; e, tendo comprado um Guia do Oriente e um capacete de cortiça, informei-me sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalém, com Benjamim Sarrosa & Cia., judeu sagaz, que ia todos os anos, de turbante, comprar bois a Marrocos.

Benjamim marcou-me, miudamente, num papel, o meu grandioso itinerário.

Embarcaria no Málaga, vapor da Casa Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, num mar sempre azul, à velha terra do Egito.

Aí um repouso sensual na festiva Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da Síria, aportaria a Jafa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo uma estrada macadamizada, ao chouto de uma égua doce, veria, ao fim de um dia e ao fim de uma noite, surgirem, negras entre colinas tristes, as muralhas de Jerusalém!

- Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um bocadinho de Espanha? Ó menino, olhe que eu quero refestelar-me.

- Refestela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipóia, tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se refestela!

No entanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se falava da minha santa empresa.

Uma manhã, li, escarlate de orgulho, no Jornal das Novidades, estas linhas honoríficas:

"Parte brevemente a visitar Jerusalém, e todos os sacros lugares em que padeceu por nóso Redentor, o nosso amigo Teodorico Raposo, sobrinho da Excelentíssima D. Patrocínio das Neves, opulenta proprietária, e modelo de virtudes cristãs. Boa viagem!"

A Titi, desvanecida, guardou o jornal no oratório, debaixo da peanha de São José;"





Eça de Queirós

pindaro





terça-feira, julho 26, 2005

Namoram-se os Elementos



O fogo que na branda cera ardia,

Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista de que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.



luis de camões


pindaro

Jurou-me aquela cadela

VOLTAS

Caterina é mais fermosa
para mim que a luz do dia;
mas mais fermosa seria
se não fosse mentirosa.
Hoje a vejo piadosa,
amanhã tão diferente
que sempre cuido que mente.

Caterina me mentiu
muitas vezes, sem ter lei,
mas todas lhe perdoei
por üa só que cumpriu.
Se, como me consentiu
falar, o mais me consente,
nunca mais direi que mente.

Má, mentirosa, malvada,
dizei: para que mentis?
Prometeis, e não cumpris?
Pois sem cumprir, tudo é nada.
Não sois bem aconselhada;
que quem promete, se mente,
o que perde não no sente.

Jurou-me aquela cadela
de vir, pela alma que tinha;
enganou-me; tem a minha;
dá-lhe pouco de perdê-la.
A vida gasto após ela,
porque ma dá se promete,
mas tira-ma quando mente.

Tudo vos consentiria
quanto quisésseis fazer,
se esse vosso prometer
fosse prometer um dia
todo então me desfaria
convosco; e vós, de contente,
zombaríeis de quem mente.

Prometou-me ontem de vir,
nunca mais me apareceu;
creio que não prometeu
senão só por me mentir.
Faz-me enfim chorar e rir;
rio quando me promete,
mas choro quando me mente.

Mas pois folgais de mentir,
prometendo de me ver,
eu vos deixo o prometer,
deixai-me vós o cumprir:
haveis então de sentir
quanto fica mais contente
o que cumpre que o que mente.



luis de camões


pindaro

O lascivo e doce

Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando;
O verso sem medidas, alegre e brando,
Expedindo no rústico raminho.

O cruel caçador, que do caminho
Se vem calado e manso desviando,
Na pronta vista a seta endireitando,
Lhe dá no estígio lago eterno ninho.

Desta arte o coração, que livre andava
(Pôsto que já de longe destinado),
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.


Luís de Camões



pindaro

segunda-feira, julho 25, 2005

Gostam de vida

Navio


Tenho a carne dorida
Do pousar de umas aves
Que não sei de onde são:
Só sei que gostam de vida
Picada em meu coração.
Quando vêm,vêm suaves;
Partindo,tão gordas vão!

Como eu gosto de estar
Aqui na minha janela
A dar miolos às aves!
Ponho-me a olhar para o mar:
-Olha-me um navio sem rumo!
E,de vê-lo,dá-lho a vela,
Ou sejam meus cílios tristes:
A ave e a nave,em resumo,
Aqui,na minha janela.


vitorino nemésio


pindaro

Chupar-lhe a áspera seiva





"O cacto é cheio de raiva com os dedos todos retorcidos e é impossível acarinhá-lo.

Ele te odeia em cada espinho espetado porque dói-lhe no corpo esse mesmo espinho cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne.

Mas pode-se cortá-lo em pedaços e chupar-lhe a áspera seiva: leite de mãe severa."





clarice lispector



pindaro

Au sein de ton image


L'homme et la mer



Homme libre, toujours tu chériras la mer!
La mer est ton miroir, tu contemples ton âme
Dans le déroulement infini de sa lame
Et ton esprit n'est pas un gouffre moins amer.

Tu te plais a plonger au sein de ton image;
Tu l'embrasses des yeux et des bras, et ton coeur
Se distrait quelquefois de sa propre rumeur
Au bruit de cette plainte indomptable et sauvage.

Vous êtes tous les deux ténébreux et discrets;
Homme, nul n'a sondé le fond de tes abîmes;
O mer, nul ne connaît tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets!

Et cependant voilà des siècles innombrables
Que vous vous combattez sans pitié ni remords,
Tellement vous aimez le carnage et la mort,
O lutteurs éternels, O frères implacables!



Charles Baudelaire


pindaro

domingo, julho 24, 2005

O benefício e os meios

Agradou a traça, e isto assim disposto, deu o procurador dos padres piedosos libelo contra as formigas; contestada por parte delas a demanda, veio articulando que eles, autores, conformando-se com seu instituto mendicante, viviam de esmolas, ajuntando-as com grande trabalho seu pelas roças daquele país, e que as formigas, animal de espírito totalmente oposto ao Evangelho, e por isso aborrecido de seu padre S. Francisco, não faziam mais que roubá-los, e não somente procediam como ladrões formigueiros, senão que com manifesta violência os pretendiam expelir de casa, arruinando-a.

E, portanto, dessem razão de si, ou, quando não, fossem todas mortas com algum ar pestilente ou afogadas com alguma inundação ou, pelo menos, exterminadas para sempre daquele distrito.

A isto veio contrariando o procurador daquele negro e miúdo povo, e alegou, por sua parte, fielmente:

«Em primeiro lugar: que elas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor lhes ensinara;

Item: que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos de virtudes que lhes mandara, a saber: de prudência, acautelando os futuros e guardando para o tempo da necessidade; de diligência, ajuntando nesta vida merecimentos para a vida eterna; de caridade ajudando umas às outras, quando a carga é maior que as forças; e também de religião e piedade, dando sepultura aos mortos da sua espécie...;

Item: que o trabalho que elas punham na sua obra era muito maior, respectivamente, que o deles, autores, em ajuntar as esmolas, porque a carga muitas vezes era maior que o corpo, e o ânimo que as forças;

Item: que, suposto que eles eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas, e que a vantagem do seu grau racional harto se descontava e batia com haverem ofendido ao Criador, não observando as regras da razão, como elas observavam as da natureza, pelo que se faziam indignos de que criatura alguma os servisse e acomodasse, pois maior infidelidade era neles defraudarem a glória de Deus por tantas vias, do que nelas furtarem sua farinha;

Item: que elas estavam de posse daquele sítio antes deles, autores, fundarem, e, portanto, não deviam ser dele esbulhadas, e da força que se lhes fizesse apelariam para a Coroa da regalia do Criador, que tanto fez os pequenos como os grandes e a cada espécie deputou seu anjo conservador. E, ultimamente, concluíram que defendessem eles a sua casa e farinha, pelos modos humanos que soubessem, porque isto lhes não tolhiam, porém que elas, sem embargo, haviam de continuar as suas diligências, pois do Senhor, e não deles, era a terra e quanto ela cria (Domini est terra et plenitudo eius).»



Padre Manuel Bernardes


pindaro

Ser gauche na vida

Poema de sete faces



Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai Carlos! ser gauche na vida.

As casas aspiram os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
Não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu chamaste Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
Mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido feito o diabo.


carlos drummond de andrade



pindaro

sexta-feira, julho 22, 2005

IMEMORIAL

"Dos beijos ao banquete apaixonado em sonhos o amor levou-me um dia."
ascenso ferreira




Imemorial
o desejo
da pedra
despida

Impúdica
a carne
da intima
bebida

Devasso
o empenho
da boca
desenhada

Indecente
a rosa
cor-de-rosa
avermelhada




Solino

A erma ternura

Noturno

Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?
Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?
Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?
Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?(...)

Cecília Meireles

pindaro




O navio em cima do mar


CANÇÃO


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles


pindaro

quinta-feira, julho 21, 2005

Como a sombra sobre a água


“Feliz de quem passou, por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa,
Inconsciente como passa a rosa,
E leve como a sombra sobre a água.

Era-te a vida um sonho: indefinido
E ténue, mas suave e transparente,
Acordaste… sorridente… e vagamente
Continuaste o sonho interrompido.”


antero de quental


pindaro

terça-feira, julho 19, 2005

Os fios de sol

TECENDO A MANHÃ


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã,desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.



joão cabral de melo neto


pindaro

Sobre o seio fresco de Vénus


"Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso - como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro.

Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; - mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus.

Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros - quantas vezes me fizestes suspirar!

Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço, me excluíam para sempre dessas alegrias sociais, vinha-me então ferir o peito - como uma frecha que se crava num tronco, e fica muito tempo vibrando!"


eça de queirós


pindaro

A luta extrema


Não quero ser o último a comer-te.
Se em tempo não ousei, agora é tarde.
Nem sopra a flama antiga nem beber-te
aplacaria sede que não arde
em minha boca seca de querer-te,
de desejar-te tanto e sem alarde,
fome que não sofria padecer-te
assim pasto de tantos, e eu covarde
a esperar que limpasses toda a gala
que por teu corpo e alma ainda resvala,
e chegasses, intata, renascida,
para travar comigo a luta extrema
que fizesse de toda a nossa vida
um chamejante, universal poema.


carlos drummond de andrade


pindaro

Llenaron el otoño de regalos



Antes de amarte, amor, nada era mío:
vacilé por las calles y las cosas:
nada contaba ni tenía nombre:
el mundo era del aire que esperaba..

Yo conocí salones cenicientos,
túneles habitados por la luna,
hangares crueles que se despedían,
preguntas que insistían en la arena..

Todo estaba vacío, muerto y mudo,
caído, abandonado y decaído,
todo era inalienablemente ajeno..

Todo era de los otros y de nadie,
hasta que tu belleza y tu pobreza
llenaron el otoño de regalos


Pablo Neruda
CIEN SONETOS DE AMOR
(1959) xxv



pindaro

segunda-feira, julho 18, 2005

Crónica-testamento

"Uma vez irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma desta vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos, com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria"...


clarice lispector



pindaro

Com uma letra e uma data

Guitarra


"Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.
Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
- no cabo flores abertas,
no gume, a medida exata,
exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.
A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata



cecília meireles


pindaro

sábado, julho 16, 2005

A cuia do vatapá




Nova bárbara escrava


Barborinha uma crioula:
Faz de bahiana evocada
Num hotel de vidro e avenca;
Usa torço cor-de-rosa,
Pano-da-costa fingido,
Chambre crivado no seio:
Seu balangandã preserva-a
Bem menos que seu enleio.
Para não ver os meus olhos
– Figa branca, figa preta
- Atira-as pra trás nas costas,
Tão bem, que só vê diante
A cuia do vatapá:
Mas eu sei quantas pancadas,
Vindo assim, seu peito dá.
Peixinho moreno, pula
No aquário do hotel de luxo
Como gota de água ao céu:
Tem vergonha de ser mate,
O seu passo é como um véu.
Barborinha é uma crioula
(Mulatinha era demais):
As cores, à parte, são várias:
Unidinhas, são iguais.
Vem servir-me cor-de-rosa,
Parda me serve xinxim
(Pérfido, atraso o jantar
Fitando-a entro e mim).
Mas o que serve em verdade
A Barborinha morena,
Na sua saia bahiana Com roda de campainha,
Não é o envisco que comem
Os peixes do hotel de vidro,
Mas a sua graça apenas.
Tão quente (sendo ela fria)!
E as mãos! as mãos! – tão pequenas,
Tão pequenas, que eu diria
Que as fazem penas – e fogem
As aves que há na Bahia!


vitorino nemésio


pindaro

quarta-feira, julho 13, 2005

Lua em piscis

“O eu foge-me sempre e é ele, no entanto, que, ao fugir da minha pessoa, a desenha e a imprime”
Paul Valéry



O que é o amor?
O amor é assim:
Hoje beija-se, amanhã não se beija,
Depois de amanhã é domingo
e segunda-feira
ninguém sabe o que será…”



Carlos Drummond de Andrade


pindaro

quinta-feira, julho 07, 2005

Le corps à corps

"Quand un feu de Bengale éclate dans nos corps
le corps à corps qu´il crée tout en tournant

fait bruler mon corps dans ton corps tout en brulant
et nous tue tous les deux. Tout en nos consumant

Cette lueur soudaine
nous fait perdre l´haleine
et c´est alors que l´ombre
yout d´un coup s´illumine
et que nous oublions tout
d´un oubli vif et doux"


(in "Drama Box" de Mísia - dito por fanny ardant)


pindaro

Novos lumes

"A mulher, que, quando ama deveras, arranca o homem das trevas descobrindo-lhe novos lumes de paixão, feições novas de sentir, delicadezas desconhecidas, mimos e enlevos, que não descortina nunca a nossa natural brutalidade.

A mulher, que ou ama como cantam os cisnes, amando e morrendo desde logo pelo amor, ou nutre em si o amor, como a árvore alimenta o parasita, vivendo só para nutrir e definhando-se enquanto ela medra à custa de sacrifícios, de abnegação e de sofrimentos inapreciáveis; ou quando mesmo, presumida em excesso e vaidosa sem termos, se ama a si, amando o homem que se lhe rendeu, e bem-querendo a esse rendimento, a essa homenagem, a esse culto, porque lhe desvanece a vaidade, porque é uma confissão eloqüente das suas perfeições, porque finalmente é seu, e veio de si, para de novo voltar para si, como as plantas amam a água, que elevam da terra, entregam aos ares, para que estes lha restituam depois em amorosas lágrimas."


rodrigo paganino


pindaro

TELEGRAMA

Hilária não tens aparecido - stop - licorosa e polpuda - stop -no sítio da emboscada - stop.
Reaparece, - stop - só de capa e mascarilha,- stop - para te adivinhar pelo beijo - stop-.


D. Júlio

Pardo do lusco-fusco






NA ALDEIA


"Ao romper da alva, ainda o dia vem longe, cada corte parece um saco sem fundo donde vão saindo movediços novelos de lã.

Quem olha as suas ruelas a essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo do lusco-fusco, a cobrir os lajedos.

Depois o sol levanta-se e ilumina os montes.

E todos eles mostram amorosamente nas encostas os brancos e mansos rebanhos que tosam o panasco macio.

A riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas nuvens merinas que se lavam, enxugam e cardam pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenar.

Numa loja de gado, ao quente bafo animal, junta-se o povo.

Todos os moradores se cotizam para a luz de carboneto ou de petróleo, e o serão começa.

É no inverno, nas grandes noites sem-fim, que se goza na aldeia essa fraternidade."


miguel torga


pindaro

quarta-feira, julho 06, 2005

De amor e navegação

Lisboa


A luz vinha devagar
Através do firmamento...
Vinha e ficava no ar,
Parada por um momento,
A ver a terra passar
No seu térreo movimento.

Depois caía em toalha
Sobre as dobras da cidade;
Caía sobre a mortalha
De ambições e de poalha,
Quase com brutalidade.

O rio, ao lado, corria
A querer fugir do abraço;
Numa vela que se abria,
E onde um sorriso batia,
O mar já era um regaço.

Mas a luz podia mais,
Voava mais do que a vela;
E o Tejo e os areais
Tingiam-se dos sinais
De uma doença amarela.

Ardia em brasa o Castelo,
Tinha febre o casario;
Cada vez mais nosso e belo,
O profeta do Restelo
Punha as sombras num navio...

Nas casas da Mouraria,
Doirada, a prostituição
Era só melancolia;
Só longínqua nostalgia
De amor e navegação.

Os heróis verdes da História
Tinham tons de humanidade;
No bronze da sua glória
Avivava-se a memória
Do preço da eternidade.

Nas ruas e avenidas,
Enluaradas de espanto,
Penavam, passavam vidas,
Mas espectrais, diluídas
Na cor maciça do encanto.

E a carne das cantarias,
Branca já de seu condão,
Desmaiava em anemias
De marítimas orgias
De um fado de perdição.


miguel torga
Lisboa, 20 de Fevereiro de 1946



pindaro

Para mal do espírito

"I like to do all the talking myself. It saves time, and prevents arguments."
oscar wilde




"Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política!

Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência — e mesmo da estupidez.

E o único inconveniente deste monumental armazém do saber era que todo aquele que lá penetrava, inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que, providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o corpo encontrava logo, para mal do espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito."

eça de queirós



pindaro

sábado, julho 02, 2005

Não se alcança de golpe

"Em literatura o estilo é como o álcool para os corpos embalsamados:
conserva-a.

Toda a literatura que resiste à corrosão do tempo deve-o ao estilo.

Homero, Cícero, Shakespeare, Camões, Voltaire, Tolstoi foram grandes estilistas.

Quer isto dizer que o estilo seja uma arte? De modo algum.

Mas sem estilo nenhuma obra se salva.

Acresce que a nossa língua está tão pouco clarificada que apenas pensa com precisão e justeza quem escreve correctamente.

Julgar que em nome duma postiça originalidade ou evidenciação do humano haja de se abolir a técnica é pueril.

E fazer tábua rasa da experiência adquirida no domínio da expressão não pode deixar de representar um inútil, inglório e malogrado intento.

A palavra é como o mármore na estátua; dar a essa matéria semblante de vida, curvas voluptuosas, sombras quentes, frémito, solidez, eis o difícil objectivo que não se alcança de golpe.

Com verbo desordenado, segundo a flux apocalíptica da imaginação, só poderá obter-se uma turva e destrambelhada arte."


aquilino ribeiro


pindaro