quarta-feira, junho 29, 2005

A nado e em biquini

“La tempête avait croisé cet homme taciturne et elle n´avait réussi qu´ à lui arracher quelques mots »
J. Conrad


Foi no mês alumbrado dos bruxedos
o aluarado encontro.

Ó Hilária ardente,
de sobrancelha sexy e gomo polpudo,
laçaste-me
com a tua boca bárbara.

Ó trémula beleza sem apoio
fiz-te pássaro e mato-te no voo.

Não me culpes, amor

foi bruxaria.


solino

sábado, junho 25, 2005

Soneto

"Que es mi barco mi tesoro,
que es mi dios la libertad,
mi ley, la fuerza y el viento,
mi única patria, la mar."



Fresca, lozana, pura y olorosa,

gala y adorno del pensil florido,

gallarda puesta sobre el ramo erguido,

fragancia esparce la naciente rosa.


Mas si el ardiente sol lumbre enojosa

vibra, del can en llamas encendido,

el dulce aroma y el color perdido,

sus hojas lleva el aura presurosa.


Así brilló un momento mi ventura

en alas del amor, y hermosa nube

fingí tal vez de gloria y de alegría.


Mas ¡ay! que el bien trocóse en amargura,

y deshojada por los aires sube

la dulce flor de la esperanza mía.



don jose espronceda


pindaro

A noite e a água


“Como o que ao deixar a ilha inaudita
se exalta com o sonho que se propôs
na pérola ardente que o imita.”

Carles Riba
(Salvatge cor)




Encontrava-se na situação daquele pescador de não sei que lenda árabe que, ao tentar afogar-se no meio do oceano, chega a um país submarino onde o fazem rei.

Tudo começa pela parte da ligação entre a noite e a sensualidade, e continua por aí fora nas histórias de correr fado até chegar à água, a da nossa memória, e a outra, a do mar.


A irmandade com o oceano é o sal que no-la dá.

A sua percentagem nele e em nós é a mesma, e que incessantemente assim tenha sido e que assim continuamente venha a ser é o salvo-conduto, o farol das fugidas dos ameaços de quem se governa como pode nas durezas dos amores.


Doutor Lívio

Ou ondulasse o mar


"Palavras luminosas ditas devagar
como se nelas pulsasse o vento
ou ondulasse o mar. Palavras escritas
como quem sabe que nenhuma
sílaba pode ser perdida.
Nenhuma frésea ou alga ou luz ou sal
ou espuma.
Nenhuma consoante ou vogal
da vida."



manuel alegre
à poesia
de eugénio de andrade


pindaro

sexta-feira, junho 24, 2005

Tão tirana e desigual

Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Se alguma tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!


francisco roíz lobo


pindaro

Saia de cor de limão


Cantiga



Descalça vai para a fonte
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.

Leva na mão a rodilha
Feita da sua toalha,
Com uma sustenta a talha,
Ergue com a outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.

As flores por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai fermosa, e não segura.

Não na ver o Sol lhe val
Por não ter novo inimigo,
Mas ela corre perigo
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura.



francisco roíz lobo


pindaro

Dá-me um pingo

"O tempo não existe.
há o presente, a memória, mas o tempo não."
françois-paul journe



Ninfa fraudulenta
pairas
entre monica e isabelle
com sao joao batista
por trás
e
és a soma dos três
no sortilégio dum dedo recurvo.

Dá-me um teu pingo.

De mel.



D. Júlio

O VOO DA PERDIZ

"Ficou-me na vida o voo da perdiz, que adeja com muita força mas tem um voo muito curto, o suficiente para escapar ao tiro e voltar à moita.

Há muito tempo que não preciso de transcendência, nem religiões nem ideologias, portanto, no meu voo curto apenas peço para manter-me num cantinho longe dos disparos."



jose luis cuerda
(dna-24.6)



pindaro

terça-feira, junho 21, 2005

Noz de fogo

"E prometer é arquear
A grande flecha"

vn



NOZ DE FOGO


Tu me deste a Palavra, a noz do fogo
Se o miolo te ficou tenho os dedos queimados.
Dá Deus nozes, Senhor... Sem dentes, desde logo,
Teu Banquete revolta os desdentados.

O Pão esperou na Voz fome e saliva
Ninguém comeu senão da própria suficiência:
Ao menos o Menino tem gengiva,
Saboreia a inocência.

Tende piedade dos Críticos,
Dai-lhes o Best-Seller
Engrossarão o seu coro.
Tudo o que for Sentido - desterrado
E oculto no choro!

Fazei guardar por anjos
A Significação
E em nossa carne eles tenham
Ceva e consolação.
À entrada do Verbo, imo da Morte,
Ponde uma folha a espada:
Guardaremos a Vida e o sangue ao Norte
Do Nada.


vitorino nemésio


pindaro

Lareira aberta pelo vento

"Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos. "
VN




A concha


A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.



Vitorino Nemésio


pindaro

Uma ruga de areia




Quando penso no mar, o mar regressa
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar;

De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.




Vitorino Nemésio

pindaro

Como o vinho no gargalo

"E quando todos esperavam
um farol ou um molinete..."
vn



Não cantarei a virgem que o cavalo
Com um xairel de sangue arrebatou,
Quebrada pelo bruto, -nem levá-lo
Ao potro vingador de um verso vou.

Não cantarei tal noite aziaga. Falo
Apenas do que tenho, do que sou
Com ela, como o vinho no gargalo
Do frasco em que me bebe e me esgotou.

Nem cantarei a vítima do resto,
Violada na inocência que perdeu
Nas emboscadas de um punício lodo:

Que só meu próprio amor acendo. E atesto
A chama da Victória que me deu
Na margarida branca o mundo todo.


vitorino nemésio


pindaro

sexta-feira, junho 17, 2005

Obras particulares



"A divina Elisa tinha agora um amante...

E unicamente por não poder, com a sua costumada honestidade, possuir um legítimo e terceiro marido.

O ditoso moço que ela adorava era com efeito casado...

Casado em Beja com uma espanhola que, ao cabo dum ano desse casamento e de outros requebros, partira para Sevilha, passar devotamente a Semana Santa, e lá adormecera nos braços dum riquíssimo criador de gado.

O marido, pacato apontador de Obras Públicas, continuara em Beja, onde também vagamente ensinava um vago desenho...

Ora uma das suas discípulas era a filha da senhora da “Corte Moreira”: e aí na Quinta, enquanto ele guiava o esfuminho da menina, Elisa o conheceu e o amou, com paixão tão urgente que o arrancou precipitadamente às Obras Públicas, e o arrastou a Lisboa, cidade mais propícia do que Beja a uma felicidade escandalosa, e que se esconde.

O João Seco é de Beja, onde passara o Natal; conhecia perfeitamente o apontador, as senhoras da “Corte Moreira” ; e compreendeu o romance, quando das janelas desse n. 214, onde catalogava a Livraria do Azemel, reconheceu Elisa na varanda da esquina, e o apontador enfiando regaladamente o portão, bem vestido, bem calçado, de luvas claras, com aparência de ser infinitamente mais ditoso naquelas obras particulares do que nas Públicas..."


eça de queirós


pindaro

Em bandós ondeados




"Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da Ericeira em Outubro, no Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no terraço, à luz da Lua!

O meu amigo nunca contemplou aquele precioso tipo de encanto Lamartiniano.

Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento.

Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados.

Uma carnação de camélia muito fresca.

Olhos negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas...

Ah! meu amigo, até eu, que já então laboriosamente anotava Hegel, depois de a encontrar numa tarde de chuva esperando a carruagem à porta do Seixas, a adorei durante três exaltados dias e lhe rimei um soneto!.."


eça de queirós


pindaro

Vi nos limos




Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.

Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.

Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daquí,onde queiras,
a vida será maior.

Nem as esp'ranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.


david mourão ferreira


pindaro

Do grilhão duro




Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou.
Que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado.

Mas chorar não estima neste estado
aonde suspirar nunca aproveitou.
Triste quero viver, poi se mudou
em tisteza a alegria do passado.

Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que a sofre e sente.

De tanto mal, a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dele aventuro.


luis vaz de camões


pindaro

Dois olhos, como há só dois




"...NO MEIO DA CLARIDADE,
DAQUELE TÃO TRISTE DIA,
GRANDE,GRANDE, ERA A CIDADE
E NINGUÉM ME CONHECIA...

ENTÃO PASSARAM POR MIM,
DOIS OLHOS LINDOS, DEPOIS
JULGUEI SONHAR, VENDO ENFIM,
DOIS OLHOS, COMO HÁ SÓ DOIS.

EM TODOS OS MEUS SENTIDOS,
TIVE PRESSÁGIOS DE DEUS
E AQUELES OLHOS, TÃO LINDOS,
AFASTARAM-SE DOS MEUS..."


pedro homem de melo


pindaro

Meu amor de algum dia


"...SE O MEU SANGUE NÃO ME ENGANA,
COMO ENGANA A FANTASIA,
HAVEMOS DE IR A VIANA,
OH MEU AMOR DE ALGUM DIA...

PARTAMOS DE FLOR AO PEITO,
QUE O AMOR É COMO O VENTO
QUEM PÁRA, PERDE-LHE O JEITO,
E MORRE A TODO O MOMENTO...

CIGANOS VERDES CIGANOS,
DEIXAI-ME COM ESTA CRENÇA:
OS PECADOS TÊM VINTE ANOS,
E O REMORSO TEM OITENTA..."


pedro homem de melo


pindaro

À ostra bela



"Coração, olha o que queres
que mulheres são mulheres"
f. roíz lobo




És ruim romã!

Onde,
no bosque de bagos rosados,
a nesga


que me leve
pela senda do teu sumo

à ostra bela,

primoroso,
e sem atravessadouros?


D. Júlio

segunda-feira, junho 13, 2005

Onde um beijo sabe a barcos e bruma





Música, levai-me:
Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?


Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.


Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum


Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.



eugénio de andrade


pindaro

domingo, junho 12, 2005

Cuerpos desnudos



"Cuerpos desnudos
almas vestidas de amor"



Música
Alegría
Poesía
erotismo por siglos retenido
despertando hoy, para sentirnos
bugas, lesbianas, dudosas
rompiendo cadenas
bailando al ritmo de la vida.
Brujas, magas, curanderas
entregándonos con fuerza
destruyendo esquemas.
Amigas nuevas y viejas conocidas
parejas
novias
compañeras
unidas al fin en el espacio.
Lágrimas
risaspromesas
deseo cumplidos y anhelos
volando por el tiempo
desencuentros que se quedan en el camino,
recuerdos del futuro que presiento.


Amparo Jimenez


pindaro

Rugido de mar




Entrega


Una ola rompe violenta
en la playa de nuestros cuerpos
nos inunda un rugido de mar
contra las rocas.
Al retirarse,
lenta,
nos deja una brisa erótica
que nos envuelve
uniéndonos
para siempre
en un beso.


Amparo Jimenez


pindaro

Al bajar la marea




só ele é que é capaz
de entrar todo na toda
(e. m. de melo e castro)





Ilusión Marina


Tu lengua,
pececillo inquieto en mi rostro.

Tu boca,
ostra que juega con mis labios.

Tu piel,
arena ardiente sobre mi cuerpo todo.

Tu voz,
canto de sirena que me llama y espera.

Mi piel y mi alma responden
pero tú, sirena mía,

te esfumas con el sol
al bajar la marea.


Amparo Jimenez


pindaro

Ervas secretas



Destes tiros assim desordenados,
Que estes moços mal destros vão tirando,
Nascem amores mil desconcertados



Formosas são algumas e outras feias,
Segundo a qualidade for das chagas;
Que o veneno espalhado pelas veias
Curam-no às vezes ásperas triagas.
Alguns ficam ligados em cadeias,
Por palavras subtis de sábias magas:
Isto acontece às vezes, quando as setas
Acertam de levar ervas secretas


luis de camões
(lusíadas)


pindaro

Peregrinos corados de sol



"Queria ter uma camisa
De um tecido bem fiado
Feita de todos os ais
Que o teu peito já tem dado"




E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore.

Tinha os olhos negros como dois sóis legendários do país do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes.

Tinha presa ao peito do corpete uma flor vermelha de cacto.

Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas que fizeram da Grécia a lenda da beleza.

Andava convulsivamente como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de ambrosia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.

O homem da palidez de mármore veio até junto a varanda e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:

— A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços de homem vão, como dois peregrinos corados de sol, em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?


eça de queirós
(o diabo)


pindaro

Nostalgia




Conhecem o Diabo?

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal.

Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o corpo.

E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano.

Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce.

Tem talvez nostalgia do Céu!


eça de queirós
(o diabo)


pindaro

Esfregada com alho

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro.

Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho.

Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir á estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura.

E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.


eça de queirós
(o tesouro)


pindaro

Palavras aladas


Era, com efeito, a hora em que homens mortais e deuses imortais se acercam das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados, e as amoráveis conversas que contentam a alma.

Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim, que ainda conservava o aroma do corpo de Mercúrio, e diante dele as ninfas, servas da deusa, colocaram os bolos, os frutos, as tenras carnes fumegando, os peixes rebrilhantes como tramas de prata.

Pousada num trono de ouro puro, a deusa recebeu da intendenta venerável o prato de ambrósia e a taça de néctar.

Ambos estenderam as mãos para as comidas perfeitas da Terra e do Céu. E logo que deram a oferenda abundante à Fome e à Sede, a ilustre Calipso, encostando a face aos dedos róseos, e considerando pensativamente o herói, soltou estas palavras aladas:

— Oh! Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da pátria... Ah!, se conhecesses, como eu quantos duros males tens de sofrer antes de avistar as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços, amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perder a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!...

Mas desejas voltar à esposa mortal, que habita na ilha áspera onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras...



eça de queirós
(A Perfeição)


pindaro

quinta-feira, junho 09, 2005

Musicas magas




CANTE HONDO



Yo meditaba absorto,
devanando los hilos del hastío y la tristeza,
cuando llegó a mi oído,
por la ventana de mi estancia, abierta

a una caliente noche de verano,
el plañir de una copia soñolienta,
quebrada por los trémolos sombríos
de las músicas magas de mi tierra.

... Y era el Amor, como una roja llama...
—Nerviosa mano en la vibrante cuerda
ponía un largo suspirar de oro
que se trocaba en surtidor de estrellas—.

... Y era la Muerte, al hombro la cuchilla,
el paso largo, torva y esquelética.
—Tal cuando yo era niño la soñaba—.

Y en la guitarra, resonante y trémula,
la brusca mano, al golpear, fingía
el reposar de un ataúd en tierra.

Y era un plañido solitario el soplo
que el polvo barre y la ceniza avienta.


antonio machado


pindaro

Sem recado

"Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa"
alexandre o´neill




O tempo dum corisco


Dos turcos desce a palavra
e aqui entreluz, naufraga.

A palavra a ninguém salva.

Melhor metê-la, sem esperança,
sem recado, na garrafa.

Sempre é da minha lavra.





alexandre o´neill

pindaro

A muda queixa amendoada



Portugal


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...




alexandre o´neill


pindaro

quarta-feira, junho 08, 2005

São graças dos olhos

"Todas as coisa têm o seu mistério
e a poesia é o mistério de todas as coisas"
frederico garcia lorca





Verdes são os campos

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.


Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.


Gado que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis,
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.



luis de camões

pindaro

É tempo de tule

É tempo de tule
sobre a penugem

e

do dedo vergado
de sao joao baptista.

Ó túrgida trigueira!


D. Julio

segunda-feira, junho 06, 2005

Onde a lua rompe



"Os corpos contam, claro que contam - contam mais do que estamos dispostos a admitir - mas nós não nos apaixonamos por corpos, apixonamo-nos uns pelos outros, e, se muito daquilo que nós somos se confina ao corpo, também há muito que está para além dele"
Paul Auster
( A Noite do Oráculo)




Surdo, Subterrâneo Rio


Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?


Eugénio de Andrade

pindaro

quinta-feira, junho 02, 2005

Boiões de geleia e caixas de ameixa seca



"Com estes olhos que recebemos da Madre Natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada.

Nada mais! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples de um binóculo de corridas, percebo, por trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geléia e caixas de ameixa seca.

Concluo, portanto, que é uma mercearia.

Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva.

Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os de meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia de um astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios.

É outra noção, e tremenda! Tens aqui, pois, o olho primitivo, o da natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência da visão.

E desde já, pelo lado do olho, portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do universo que ele não suspeita e de que está privado.

Aplica esta prova a todos os órgãos e compreende o meu princípio.

Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é, portanto, que nos devemos cercar de Civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver. "


eça de queirós
(A cidade e as serras)

pindaro

Uma vocação qualquer




" Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes, era em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro Antônio de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tem notável por sua jerarquia, como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte de Guerra.

Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel provinciano.

Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio.

Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro.

Os dotes de espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara entre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de "brocas", com que ainda hoje os seus descendentes em Vila-Real são conhecidos.

Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele digeria na sua terra.

Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era excelente flautista; foi a primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta se sustentou dois anos em Coimbra, durante os quais seu pai lhe suspendeu as mesadas, porque os rendimentos da casa não bastavam a livrar outro filho de um crime de morte.

Formara-se Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no Desembargo do Paço, iniciação banal dos que aspiravam à carreira da magistratura. Já Fernão Botelho, pai do bacharel, fora bem aceite em Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em risco, na tentativa regicida de 1758.

O provinciano saiu das masmorras da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto do conde de Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera do primor de sua geneologia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bomjardim do Porto: pleito ridículo, mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho."



camilo castelo branco
(amor de perdição)

pindaro

Perla fina

Ao rigor de Lisi



Mais dura, mais cruel, mais rigorosa
Sois, Lisi, que o cometa, rocha ou muro
Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
Que o Céu vê, cerca o Mar, a Terra goza.

Sois a mais rica, mais bela, mais lustrosa
Que a perla, rosa, Sol, ou jasmim puro,
Pois sem vós fica feio, pobre e escuro,
Sol em céu, perla em mar, em jardim rosa.

Não viu tão doce, plácida e amena,
(brame o Mar, trema a terra, o Céu se agrave),
Luz o Céu, ave a terra, o Mar sirena.

Vós triunfais de sirena, luz e ave,
Claro Sol, perla fina, rosa amena,
Mor cometa, árduo muro e rocha grave.





jerônimo baía
(fenix renascida)


pindaro

quarta-feira, junho 01, 2005

Em mim te almas



De longo curso


Minha alma descansa na tua alma,
onde a luz jamais
desativada:
é um navio de longo
curso pela água.

Redonda a luz e nós
atracamos na foz
com o fundo calmo.
Em mim te almas
e te amando, eu almo.


carlos nejar


pindaro