sábado, dezembro 31, 2005

Passagem do ano





"Que horas serão isto?"
jcpires



O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o
calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o
clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do
acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos
séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.




Carlos Drummond de Andrade



pindaro

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Um ramo de doze badaladas


FALAVAM-ME DE AMOR



Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.



Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba



pindaro

A infância ressurecta





NATAL À BEIRA-RIO


É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?


David Mourão-Ferreira,
Obra Poética 1948-1988

pindaro





terça-feira, dezembro 13, 2005

A sombra tempera a luz


“Os piratas, esses sim, tinham aplomb e conheciam as sombras”
anónimo




É o que se tira da carta à rainha, da pluma de Sir Walter Raleigh:

“Dêem-me a minha concha de silêncio,
O meu bordão de fé, para me amparar,
A minha escritura de júbilo, imortal dieta,
A minha garrafa de salvação,
A minha toga de glória, verdadeiro penhor de esperança,
E então farei a peregrinação.”

O navegante, dominador que era de obscuridades subtis, tinha por certo lido os ensinamentos do grande Giordano Bruno em “The shadows of ideas”:

“A sombra tempera a luz...
As sombras não se dissolvem,
Mas mantêm e protegem a luz que há em nós
E conduzem-nos ao conhecimento e à recordação.”

Mais tarde, Sir Thomas Browne, gourmet de trevas e sombreados, dado a sínteses, dobrou esta esquina bicuda com um simples adágio no imperecível “Urne-Burial & Garden of Cyrus”:

“A noite do tempo supera em muito o dia.”

(Percebe-se a tirada de Virgínia Woolf: “But why fly in the face of facts? Few people love the writings of Sir Thomas Browne, but those who do are of the salt of the Earth.”)


Foi depois que Voltaire, dando moldura às estátuas e aos vultos, arrematou todo o tema das sombras com um belíssimo sinal da cruz:

“É o escândalo público que faz a ofensa,
pecar em segredo não é sequer pecar.”




Solino

A BELEZA DO RUMOR ENTRANHADO






“ O desprazer é já menos, porque toda a cousa que se faz, de que nos não praz, podemos dizer com verdade que nos despraz dela, ainda que seja tão ligeira que não sintamos.”
D. Duarte (Leal Conselheiro)



D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Almeida Garret e Pascoaes, entre outros vultos antigos, tinham a palavra saudade ( soidade para D. Dinis) como um exclusivo pátrio, um termo só da nossa terra, intraduzível.

Dizia mesmo o Visconde João Baptista que “... o sentimento por ele representado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja um vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa...”

Só mais à frente, século passado adentro, tal ideia, quase mágica, foi removida.

De facto, outras nações têm para a saudade um termo só seu: o galego tem soledades ou soedades; o catalão, anyoransa ou anyoramento; o italiano, desio ou disio; o romeno doru ou dor; o sueco, saknad; o dinamarquês, savn; o islandês, saknaor, e o alemão sehnsucht.

O filólogo Manuel de Melo abriu o capote a este bicho, com luzimento, em Notas Lexicológicas.

Falando das canções melancólicas dos romenos, Cratiunesco volteava sobre doru:

“Ce mot semble venir du mot latin desiderium, dont il exprime tous les nuances – le regret d´un bien perdu, le chagrin que cause son absence, l´ésperance de le recouvrer, le désir d´un bonheur, que l´on ne connait point encore et l´ivresse que en accompagne la posséssion.”

E, em francês, dava-se ao doru do poeta Alecandri o sentido de “désir mêlé de regret”.

Vamos, ainda, ao Purgatorio, com Dante:

“Era giá l´ora che volge il disio
Ai naviganti, e intenerisci il cuore
Lo di che han ai dolci amici addio;

E che lo nuovo peregrin d´amore
Punge, se ode aquilla di lontano,
Che peja il giorno pianger che si more”

( “C´était déja l´heure qui réveille les regrets
des navigateurs et attendrit leur âmme”, etc.
-Fiorentino)


Saudade, essa palavra para uma “mimosa paixão da alma” (D. Francisco Manuel de Melo), não é só nossa.
E é de folgar que seja assim.
O contrário seria uma desordenança.
Das grandes.



Leonardo

Cesta de frutos de fuego

TUS OJOS


Tus ojos son la patria
del relámpago y de la lágrima,
silencio que habla,
tempestades sin viento,
mar sin olas, pájaros presos,
doradas fieras adormecidas,
topacios impíos como la verdad,
otoño en un claro del bosque
en donde la luz canta en el hombro
de un árbol y son pájaros todas las hojas,
playa que la mañana
encuentra constelada de ojos,
cesta de frutos de fuego,
mentira que alimenta,
espejos de este mundo,
puertas del más allá,
pulsación tranquila del mar a mediodía,
absoluto que parpadea, páramo.


Octavio Paz


pindaro

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Tem muitos ângulos

"E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia."
J.C.P.




"(...) Não, nisto de alguém se interrogar ao espelho, olhos nos olhos, é consoante. Tem muitos ângulos - e tu estás aí, que não me deixas mentir. Vários ângulos. Há quem procure, santa inocência, fazer um discurso de silêncio capaz de estilhaçar o vidro e há quem espere receber, por reflexo da própria imagem, algum calor animal que desconhece. Seja como for, o que dói, e assusta, e é triste e desastradamente cómico neste exercício, é o pleonasmo de si mesma em que a pessoa se transforma. Repete-se. Se bem que com feroz independência (todo o seu esforço é esse) repete-se em imagens controversas que a possam explicar. (...) "


J. Cardoso Pires


pindaro

sexta-feira, dezembro 09, 2005

À espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa




Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve
Virgilio Ferreira


"Que se saiba há um único homem que se põe de pernas para o ar como as personagens de Chagall. Por exemplo: está muito bem a comer, surge um rafeiro e ei-lo de sapatos mais altos do que a toalha («Detesto estes cabrões, detesto estes cabrões, detesto estes cabrões») a navegar no azeite do bacalhau como os violinistas do pintor à deriva na tela. Por exemplo: a gente sobe à noite os degraus do elevador da Bica, iluminados de lado de taberna em taberna, eu a cambalear de cansaço nas escadas e ele a flutuar à minha volta como um anjo de óculos, conversando comigo de Antonioni e Godard, primos distantes, com relógios e amantes abraçados em torno do blusão. E há os bares, os cabisbaixos bares tristes de Lisboa, tumulares e desesperados, que o gás ilumina de pavios de azeite amarelo com duas pedras de gelo, debaixo da ponta acesa do cigarro americano, em homenagem a Hemingway e a Fitzgerald. E os restantes flibusteiros connosco. Artur Semedo, a servir atrás do bigode fino a sua ironia de Capitão Blood benfiquista; Dinis Machado, sempre a apear-se de um comboio de inocência perpétua, de sapatinho elegante e sobretudo à George Raft; e eu, o último e mais espantado da troupe, calado, de queixo numa água das pedras vazia. Quando anoitece, José Cardoso Pires começa a ganhar consistência no interior da roupa, íntimo de barmen e do labirinto estranho em que Lisboa se transforma, balizada de chafarizes e polícias que perderam, desde há séculos, o costume de sorrir. As árvores pingam trevas em cima de nós, os prédios aproximam-se, como as ovelhas, para adormecerem, encostando umas às outras os quadris das varandas. George Raft abotoa melhor o sobretudo. O Capitão Blood, de olho aceso para recordações distantes, ajusta-se na luva preta e no emblema do Colégio Militar onde moeu os miolos dos tenentes e fez coçar de aflição os sovacos dos maiores. E eu alinho um segundo gargalo de água das pedras à ilharga do primeiro, enquanto José Cardoso Pires levanta as duas mãos para se lançar no espaço rarefeito de fumo a explicar Jack Nicholson. Às duas da manhã, quando as rugas, piedosamente apagadas pela ausência de sol, fazem de nós um grupo de adolescentes à espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa, e os empregados dos bares circulam entre as mesas com a diligência das senhoras que procedem à recolha das esmolas no ofertório das missas, movidos pelo afã cristão da cirrose, saímos para o ressonar a estores soltos dos bairros de Lisboa, o Dinis ocultando o revólver no sobretudo impressionante, o Artur, corsário do celulóide, a ferver de ideias de tal forma que o bigode lhe borbulha, eu a arrotar a água das pedras nas esquinas, que é a minha forma canina de erguer a perna e urinar, e o Zé, granito sem peso, à procura do Dupont nos bolsos para nos converter melhor a um golo do Nenê. E é ele o único de nós que voa, sem peso, por cima das mandíbulas das camionetas do lixo e dos pesadelos dos escriturários, tripulando a nuvem de um Renault branco que se some, a tremer, sobre os telhados, rumo às folhas de papel A4 que são os lençõis em que por fim nos deitamos, a rechear de ossos o pijama e de palavras adiadas os rectângulos das páginas. Hei-de informar-me se o Zé não dorme sem tocar nelas, ensanduichado pelo diálogo de duas personagens, apesar do lastro do mar da Caparica por dentro da cabeça e das folhas das árvores de São João de Brito ao comprido do sangue. E acorda no dia seguinte estremunhado, rodeado de gaivotas, por cima do hálito de baunilha do vendedor de gelados da Praia da Rainha. O hóspede de Job, meu Amigo."


Cardoso Pires visto por... António Lobo Antunes
in Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 101-103
(in CITI)
pindaro

Que horas serão isto?

" (...) No espelho os olhos só se vêem reflectidos noutras coisas, segreda-me por cima do ombro o honorável William Shakespeare a páginas tantas (e com franqueza, deitam um bafo podre, estas palavras). Mas nem assim, José continua na dele. José é José, suspeita que o querem despir do passado para que fique incapaz de o reconhecer quando lho puserem pela frente na primeira oportunidade. E defende-se, não desarma. Daqui a pouco está com certeza a citar Santayana (não me admirava nada) e a sublinhar desgraças. Revê exemplos, concita mortos porque (palavras de Santayana, eu não dizia?) «quem esquece o passado arrisca-se a vivê-lo outra vez» e ao chegar a este ponto não adianta mais. Disse. Ou melhor, eu disse.

Mas fumar ao espelho não é só ver para trás olhando de frente. É também um modo-josé de futurar, para lá do rosto que o repete e que fumega. E aí, deixa que te diga, o pessimismo ... que nos lixa. Porquê? Ah bom, porque... uma dor de colhões, não te rias. Absolutamente. O pessimismo, se não sabes ficas a saber, sempre teve a ver com carências afectavas. Daí que ele seja incómodo por natureza. Incómodo para o próprio que, sabe Deus, tem de viver toda a vida com essa dor, esse nó, e incómodo para a Pátria que já mandou para o Camões todos os Velhos do Restelo que lhe andavam a dar azar. Isto - por um lado, aquele a que podemos chamar Da Saúde Nacional. Mas há o outro, o da superstição. Absolutamente. O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer. E se acontecer, percebes, também já não perde tudo, ganhou pelo menos a glória da razão. Uma superstição pela negativa ou por efeito contrário, dirá algum, mas muitas ... realmente nesse jogo a dois gumes que acaba o austero pessimismo. Que horas serão isto? (...)"

Cardoso Pires por Cardoso Pires,
entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 89-94


pindaro

LISBOA

"Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade a navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, até a brisa que corre me sabe a sal (...) "

José Cardoso Pires


pindaro

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Legenda

“Do latim medieval legenda, o que deve ser lido.
Representação de factos ou personagens ampliadas pela imaginação.
Todo o texto que acompanha uma imagem e lhe dá sentido.”

Dic. Le Robert




Brassaí conta que um ser muito jovem e belo por quem um grande nome das letras francesas se apaixonara lhe dera uma fotografia nas costas da qual tinha escrito estas palavras:

Look at my face; my name is
Might have been;
I am also called
No more, Too late, Farwell.


Na nudez do “Might have been” atravessam, ao mesmo tempo, a ausência e o excesso de sentido, levadas em dois sopros no mesmo vento.

Nesse canto elegíaco de desnudamento, perpassa, macio, o refrulho de Giulia Sissa: a alma é um corpo de mulher...

Naquela privação, voraz como um vinho que se entorna, só o tempo lambe o golpe, o tempo entrevisto por Yeats, pois com o tempo a sabedoria:

Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade.


Depois, fabricantes de simulacros, como animais marcaríamos em cada dia novo território no mapa da rosa-dos-ventos, debruado de sabores ásperos e avivado de azul.




Doutor Lívio

Nusquama (nenhures)

"Navegavam sem o mapa que faziam"
sophia de melo breyner




O deslumbramento e a nostalgia da errância vão discorrendo por entre as emboscadas das horas.

É voltar a soltar amarras, é voltar a peregrinar o sul dos encantos, que só o incessante rumor da distância nos redime.




Leonardo

Sem luxo






"Que pena me faz a mim, filho do campo, criado ao murmúrio das águas de rega e à sombra dos arvoredos, que esta gente de Lisboa passe as horas e dias de repouso acotovelando-se tristemente pelas ruas estreitas, e não tenha um grande parque, sem luxo, de relvados frescos e árvores copadas, onde brinque, rie, jogue, tome ar puro e verdadeiramente se divirta em contacto com a natureza."

A. Salazar



pindaro

segunda-feira, dezembro 05, 2005

La aurora del fruto

La lluvia tiene un vago secreto de ternura,
algo de soñolencia resignada y amable,
una música humilde se despierta con ella
que hace vibrar el alma dormida del paisaje.




frederico garcia lorca


pindaro

No breve espaço

O mundo é grande


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.



carlos drummond de andrade



pindaro

O navio em cima do mar

CANÇÃO


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles



pindaro

Au sein de ton image

L'homme et la mer



Homme libre, toujours tu chériras la mer!
La mer est ton miroir, tu contemples ton âme
Dans le déroulement infini de sa lame
Et ton esprit n'est pas un gouffre moins amer.

Tu te plais a plonger au sein de ton image;
Tu l'embrasses des yeux et des bras, et ton coeur
Se distrait quelquefois de sa propre rumeur
Au bruit de cette plainte indomptable et sauvage.

Vous êtes tous les deux ténébreux et discrets;
Homme, nul n'a sondé le fond de tes abîmes;
O mer, nul ne connaît tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets!

Et cependant voilà des siècles innombrables
Que vous vous combattez sans pitié ni remords,
Tellement vous aimez le carnage et la mort,
O lutteurs éternels, O frères implacables!



Charles Baudelaire


pindaro

Tem o bilhar, tem a tipóia, tem a batota, tem a mulherinha...

"- E olha, Teodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te sejam necessárias mais ceroulas... Encomenda, filho, encomenda, que graças a Nossa Senhora do Rosário tenho pos­ses, e quero que vás com decência e te apresentes bem lá na sepulturazinha de Deus!...

Encomendei; e, tendo comprado um Guia do Oriente e um capacete de cortiça, informei-me sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalém, com Benjamim Sarrosa & Cia., judeu sagaz, que ia todos os anos, de turbante, comprar bois a Marrocos.

Benjamim marcou-me, miudamente, num papel, o meu grandioso itinerário.

Embarcaria no Málaga, vapor da Casa Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, num mar sempre azul, à velha terra do Egito.

Aí um repouso sensual na festiva Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da Síria, aportaria a Jafa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo uma estrada macadamizada, ao chouto de uma égua doce, veria, ao fim de um dia e ao fim de uma noite, surgirem, negras entre colinas tristes, as muralhas de Jerusalém!

- Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um bocadinho de Espanha? Ó menino, olhe que eu quero refestelar-me.

- Refestela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipóia, tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se refestela!

No entanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se falava da minha santa empresa.

Uma manhã, li, escarlate de orgulho, no Jornal das Novidades, estas linhas honoríficas:

"Parte brevemente a visitar Jerusalém, e todos os sacros lugares em que padeceu por nóso Redentor, o nosso amigo Teodorico Raposo, sobrinho da Excelentíssima D. Patrocínio das Neves, opulenta proprietária, e modelo de virtudes cristãs. Boa viagem!"

A Titi, desvanecida, guardou o jornal no oratório, debaixo da peanha de São José;"





Eça de Queirós



pindaro

Tens inferno pior







Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórrido negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares,cós Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores
-E meu cioso pranto... oh Jove, oh nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.


Bocage


pindaro

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Com os adornos







Que polpuda que és
quando
ao bosque

arrimam
os tangos de verão


que riçam a penugem
e
rasam as marés
da fome e da sede

com os adornos
do sumo




solino

Dei mais a vida e a alma






Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só com vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.


Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e a alma por querê-los,
Donde já me não fica mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.



Luis Vaz de Camões

pindaro

Pensamiento belicoso

CAMPO DE BATALLA


Nace en las ingles un calor callado,
como un rumor de espuma silencioso.
Su dura mimbre el tulipán precioso
dobla sin agua, vivo y agotado.

Crece en la sangre un desasosegado,
urgente pensamiento belicoso.
La exhausta flor perdida en su reposo
rompe su sueño en la raíz mojado.

Salta la tierra y de su entraña pierde
savia, veneno y alameda verde.
Palpita, cruje, azota, empuja, estalla.

La vida hiende vida en plena vida.
Y aunque la muerte gane la partida,
todo es un campo alegre de batalla.



Rafael Alberti


pindaro

Y navego en cada resonancia



He aquí que el silencio fue integrado
por el total de la palabra humana,
y no hablar es morir entre los seres:
se hace lenguaje hasta la cabellera,
habla la boca sin mover los labios,
los ojos de repente son palabras...
...Yo tomo la palabra y la recorro
como si fuera sólo
forma humana,
me embelesan sus líneas
y navego
en cada resonancia del idioma...



Pablo Neruda



pindaro

É lutar contra o bonito

"(...) País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira , comigo. "
A. O´Neill




"Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito."

Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

(...)

Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido
que a regra é não haver regra,
a não ser a de cada um,
com a sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo..."


alexandre o´neill



pindaro

quarta-feira, novembro 30, 2005

Coisas efémeras que nunca acabam

"Quels doux supplices
Quelles délices,
De brusler dans les flammes
De la beauté des Dammes"

Antoine Boesset





"As mulheres não são pacientes com o amor. São pacientes com tudo e de tudo fazem hábitos. Do amor é que não. daí que muitas delas deixem de ser honestas e se entreguem a uma forma de criação que é principiar do nada coisas efémeras que nunca acabam. Chama-se a isto Quinta-Essência, a região do fogo e do amor.
(...)
Há, nesse círculo da quinta-essência, uma atracção tão arrebatada que ela serve de linguagem entre gente completamente estranha na raça e nos costumes. Um deleite, que não é dos sentidos mas superior nos seus efeitos,..."



Agustina Bessa Luís




pindaro

É este amor tão fino

Pede o desejo, Dama, que vos veja



Pede o desejo, Dama, que vos veja.
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.





Luis de Camões



pindaro

Cambiador

" Enfiamento é a linha fictícia que une dois ou três pontos situados na terra ou no mar... "




Já dizia o padre António Vieira ser “inclinação natural anelar ao negado.”

Retira-se de facto sabor acrescido se o alcançado é, antes, recusado.
Melhor ainda, tratando-se de coisa interdita.
E, delícia então, se a coisa é insólita.

O negado mais o proibido mais o insólito casam os cheiros e os sabores por inteiro.

A transgressão, a caça e a guerra amamentam-se disto.

O carácter do pecado navega no encanto da sensibilidade à angústia que fundamenta o interdito, porque transgredir não é negar a proibição, antes é rematá-la, perfazendo-a.

O objecto da dádiva é o descomedimento, soberbo e audaz, e o refluxo das proibições liberta o tumulto da exuberância e a desordem dos clamores e brados.

O paradoxo da tempestade. O rosto anuncia o que o vestido dissimula, o alcance luminoso.

Mas para adivinhar o enigma e ouvir a voz da inacessível solidão tem de se ter bem presente que “em ribeiro grande saltar de trás.”




D. Júlio

domingo, novembro 27, 2005

Primeiramente o sal



"Que es mi barco mi tesoro,
que es mi dios la libertad,
mi ley, la fuerza y el viento,
mi única patria, la mar."
don jose espronceda





”Primeiramente o sal (disse o Doutor Lívio), a quem um autor chamou conduto de todos os outros, é o que dá sabor e faz apetite ao desejo para todos eles.

- Muito se parece nisso com a fome (acudiu Solino).

-Assim é (disse o Doutor), porém tem de mais que os conserva e sustenta com sua força; por os quais atributos Homero e Platão chamaram ao sal divino; e assim como os mantimentos sem ele não obrigam a vontade assim por ele, como disse Plínio, significamos os afeitos do ânimo, chamando homem sem sal, prática sem ele, riso em sosso, e ainda fermosura sem sal, como escreveu Catulo de Quíncia que, pintando-a fermosa, branca e comprida, diz que em toda aquela figura não havia pedra de sal.

De maneira que, conforme a este sentido, o sal é uma graça ou composição da prática, do rosto ou do movimento do andar, que faz as pessoas aprazíveis.

E esta, segundo alguns, particularmente se declara no que obriga a siso e alegria, com um modo de murmuração leve.

Donde Séneca disse que o sal da conversação dos amigos não havia de ter dentes; e assim como os mantimentos que têm mais sal fazem maior sede a quem os come, assim a conversação, que tem mais dele, é mais apetitosa e desejada dos ouvintes e como, sem sal, todas as iguarias são sem sabores e desgostosas, assim a prática onde a sua graça falta é puro fastio.

Porém, quanto a mim, o que da tenção destes autores convém mais com o nosso modo de falar, sal quer dizer graça, que é o contrário da frieza e sensaboria, e dizemos do gracioso que é salgado, e do bem dito, que tem muito sal, e do que o não é, que não tem nenhum.

Sendo a causa geral porque lhes parecia aos antigos que se apartava e perdia a amizade, entornando-se o sal que na mesa fazia a figura dela.

E, à semelhança, tinham por boa sorte derramar-se o vinho, que como era símbolo de alegria e contentamento, desejavam que entre todos se espalhasse."


francisco roíz lobo


píndaro

Zona de contacto

“Senhor de San Patrizio – disse Mazarino aproximando um prato de lavagantes vivos que pareciam cozidos de um de lavagantes cozidos que pareciam vivos…”
Umberto Eco





Servem-se por agora não a aboborinha com alho e hortelã e os espetinhos de moela mas, à guisa de petisco d´alma, sabores espirituais entremeados segundo a sabida regra de Iriarte, que, aos epigramas, queria-os como abelhas:

“A la abeja semejante
para que cause placer,
el epigrama há de ser
pequeno, dulce e punzante.”

Pensamentos de talher, servidos sem guarnição pelos vateis maiores da santa terrinha.
A esmo, os relances de Camilo, Eça e Fialho:

“Consta que ele foi typographo em Coimbra para pagar os estudos.
Não havia de gastar muito se pagou o que sabe”

“…esses apenas produzem vegetalidades de folhagem amarellada, e alguns tortulhos bravos de espécie venenosa, rajados pela peçonha das velhas inépcias.”

“Trajava com elegância, vestia luva gema de ovo todos os dias, e aos domingos alugava cavalo.”

“Naquele tempo até as mulheres de espírito ruim me pareciam boas.”

“Diz adeus às tuas cabrinhas que eu volto já, filha…”

“Tinha a dose de velhacaria que a natureza concede a cada tolo maior de marca.”


CCBranco


“Tinha muita lição de livro mau donde sacava virtuosas parvoiçadas, mas habitava nele um gosto depravado pelo fadinho e um justo amor pelo bacalhau de cebolada.”

“Nesse momento estalavam foguetes ao longe, Lembrei-me que era domingo, dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flamejou, atraindo-me deliciosamente: - era a tourada vista de um camarote; depois um jantar com champagne; à noite, a orgia, como uma iniciação!
Corri à mesa. Atulhei as algibeiras de letras sobre Londres. Descia rua com um furor de abutre fendendo o ar contra a presa.
Uma caleche passava, vazia. Detive-a, berrei:
- Aos touros! “

EdQ


“Duas horas de sala de armas, alguns minutos de cabeleireiro e de clube, um bom alfaiate, uma ponta de desdém, e certo ar fatigado de quem esperdiça a vida sem lhe saborear dos proveitos, bastarão para dar o elegante.”

“Gosto do Parlamento como gosto dos toiros, para me estontear um instante na mancha ondeante das cabeças, nos borborinhos d´entrada, e de sahida, e finalmente, no investir do primeiro bicho.”

“…só aguardam, para bem servir o Estado, que o Estado lhes sirva a eles coito onde amozendem a preguiça gososa que os derranca.”

“Homem, isso não é música, é um boi que saltou a trincheira do sol!
Ora queira embolar-se, amigo Pratas, e fazer o favor de seguir o que lá está.”


FdA


E, depois, mesmo a esmo, as citações, disse Benjamim, são como ladrões de estradas, que fazem um ataque armado e aliviam um ocioso das suas convicções.



Doutor Lívio

quarta-feira, novembro 23, 2005

Entre todas as terras





"Santarém, Santarém! Levanta a tua cabeça coroada de torres e de mosteiros, de palácios e de templos! Mira-te no Tejo, princesa das nossas vilas e verás como eras bela e grande, rica e poderosa entre todas as terras portuguesas."


Almeida Garret


pindaro

...Um golpe de asa

Quase


Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...


Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!


De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...


Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...


Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...


Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...


Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...



mario de sá-carneiro



pindaro

segunda-feira, novembro 21, 2005

Foste tu quem nos veio namorar




MAR! Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

MAR! Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
- Nem aumentar nem sufocar o pranto...

MAR! Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

MAR! Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

MAR! E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!




miguel torga



pindaro

Em cada coisa






Para ser grande, sê inteiro; nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.





Ricardo Reis




pindaro

quinta-feira, novembro 17, 2005

Como os sentimentos esdrúxulos







Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


Álvaro de Campos


pindaro

Esse comboio de corda




Autopsicografia



"O poeta mente a verdade"
(Bertus Afjes)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.



fernando pessoa



pindaro

Não se sabe revelar







O AMOR, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...


fernando pessoa


pindaro

sexta-feira, novembro 11, 2005

Deixa-me acender

Gostava


Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafisica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...


Álvaro de Campos



pindaro

Entre vento e navalha

Escolha



Entre vento e navalha escolho o vento

entre verde e vermelho aquele azul

que até na morte servirá de espelho

ao vento que por dentro me deslumbra

Entre ventre e cipreste escolho o Sol

Entre as mãos que se dão a que se oculta

Entre o que nunca soube o que já sobra

Entre a relva um milímetro de bruma.




david mourão-ferreira



pindaro

De zero diante do infinito

"Un libro, como un viaje, se comienza con inquietud y se termina con melancolía"
José de Vasconcelos





Alentejo

"Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho, e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta, e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total ..."

Miguel Torga



pindaro

Que ambiguidade vens explorar?






GATO

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,

quem somos nós, teus donos ou teus servos?


Alexandre O'Neill


pindaro

terça-feira, novembro 08, 2005

Guiadas por sinais






A largada


Foram então as ânsias e os pinhais
Transformados em frágeis caravelas
Que partiam guiadas por sinais
Duma agulha inquieta como elas...

Foram então abraços repetidos
À Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
Às palavras cansadas
Que se ouviam no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
Cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.



Miguel Torga



pindaro

Iates pelo mar fora

O lord


Lord que eu fui de Escócias doutra vida
Hoje arrasta por esta a sua decadência,
Sem brilho e equipagens.
Milord reduzido a viver de imagens,
Pára às montras de jóias de opulência
Num desejo brumoso - em dúvida iludida...
(- Por isso a minha raiva mal contida,
- Por isso a minha eterna impaciência.)

Olha as Praças, rodeia-as...
Quem sabe se ele outrora
Teve Praças, como esta, e palácios e colunas -
Longas terras, quintas cheias,
Iates pelo mar fora,
Montanhas e lagos, florestas e dunas...

(- Por isso a sensação em mim fincada há tanto
Dum grande património algures haver perdido;
Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido -
E a Cor na minha Obra o que ficou do encanto...)



Mário de Sá Carneiro



pindaro

E os outros que hão-de vir

Reflorir, sempre


Não é já de Natal esta poesia.
E, se a teus pés deponho algo que encerra
e não algo que cria,
é porque em ti confio: como a terra,
por sobre ti os anos passarão,
a mesma serás sempre, e o coração,
como esse interior da terra nunca visto,
a primavera eterna de que existo,
o reflorir de sempre, o dia a dia,
o novo tempo e os outros que hão-de vir.



Jorge de Sena


pindaro

Na sua mão direita

Na mão de Deus


À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O. M.


Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!




Antero de Quental


pindaro

Ou uma noite qualquer

A meu favor


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de nós todos




Alexandre O'Neill



pindaro

Cheguei-me per´ela

Serranilha


A serra é alta, fria e nevosa;
vi venir serrana gentil, graciosa.

Vi venir serrana, gentil, graciosa;
cheguei-me per’ela com grã cortesia.

Cheguei-me per’ela de grã cortesia,
disse-lhe: senhora, quereis companhia?

Disse-lhe: senhora, quereis companhia?
Disse-me: escudeiro, segui vossa via.



Gil Vicente



pindaro

É tanta a graça que tem

Cantiga


Mote

Antes que o Sol se levante,
Vai Vilante a ver o gado,
Mas não vê Sol levantado
Quem vê primeiro a Vilante.


Voltas

É tanta a graça que tem
Com uma touca mal envolta,
Manga de camisa solta,
Faixa pregada ao desdém,
Que se o Sol a vir diante,
Quando vai mungir o gado,
Ficará como enleado
Ante os olhos de Vilante.

Descalça às vezes se atreve
Ir em mangas de camisa,
Se entre as ervas neve pisa
Não se julga qual é neve;
Duvida o que está diante
Quando a vê mungir o gado,
Se é tudo leite amassado,
Se tudo as mãos de Vilante.

Se acaso o braço levanta,
Porque a beatilha encolhe,
De qualquer pastor que a olhe
Leva a alma na garganta;
E inda que o Sol se alevante
A dar graça e luz ao prado,
Já Vilante lha tem dado,
Que o Sol tomou de Vilante.



Francisco Roíz Lobo



pindaro

sábado, novembro 05, 2005

Ruminava em coisas e loisas


" O licenciado era homem corpulento e bem nutrido. Visivelmente enfadado com a capilota, sobe e desce, brenha após brenha, avançou devagar e soprando para a estrada que levava de Romarigães a Agualonga.
Como é próprio do animal que Aristóteles chamava político, isto é, que vai sempre tratando de si, ruminava em coisas e loisas.
Ora lhe vinha à cabeça o javali que se escapara na fresca da ribeira, e dizia então com os seus botões: Deixa, há mais marés do que marinheiros. Daqui a dias estou cá botado e vais ver o bonito. Mas é preciso cercar a mata e cortar-te a retirada pelo lado da serra. Tu voltas, oh se voltas! Na serra daArga não tem bolotas como aqui. a bolota é que te há-de deitar a perder!
E logo a imaginação lhe pulava a outro quadrante: Que rica fazenda se fazia destes chavascais! Fazenda de leite e mel, como entendiam os antigos. Fazenda, fazendo-a. Era questão de murar e depois virar a leiva."


aquilino ribeiro



pindaro

quarta-feira, novembro 02, 2005

Tango do covil

Ai, quem me dera ser cantor
Quem dera ser tenor
Quem sabe ter a voz
Igual aos rouxinóis
Igual ao trovador
Que canta os arrebóis
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Deixa eu cantar tua beleza
Tu és a mais linda princesa
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser doutor
Formado em Salvador
Ter um diploma, anel
E voz de bacharel
Fazer em teu louvor
Discursos a granel
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Tu és a dama mais formosa
E, ouso dizer, a mais gostosa
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser garçom
Ter um sapato bom
Quem sabe até talvez
Ser um garçom francês
Falar de champinhon
Falar de molho inglês
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
És tão graciosa e tão miúda
Tu és a dama mais tesuda
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser Gardel
Tenor e bacharel
Francês e rouxinol
Doutor em champinhon
Garçom em Salvador
E locutor de futebol
Pra te dizer febril
Bem-vinda
Tua beleza é quase um crime
Tu és a bunda mais sublime
Aqui deste covil



chico buarque de holanda



pindaro

terça-feira, novembro 01, 2005

Une carte marine




Gentilhomme de fortune, Corto Maltese ne vas pas chercher l´aventure; elle vient à lui tandis qu´il déambule pour tromper un ennui empreint de nostalgie.

il sait que

"Une carte marine est bien plus qu´un instrument indispinsable pour aller d´un point à un autre; c´est une gravure, une page d´histoire, parfois un roman d´aventures."
Jacques Dupuet, Marin

et que

"... attira la femme contre lui, et telle qu´elle était, assise, le tee-shirt retroussé sur les hanches, le goût de l´orange sur la bouche, il chercha le chemin d´Ithaque sur l´autre rivage de cette mer ancienne et grise comme la mémoire."
Arturo Perez-Rever te, La cimitiére des bateaux sans nom



À marinheira que na paixão pelo mar navega o atlântico azul



Solino

Em dia com a pátria e o seu partido






"A sua personalidade de cronista meticulosamente fidedigno, em dia com a pátria e o seu partido, ressaltava do esmero com que arredondava a pança garrafal das letras e lhes projectava as hastes para o zénite."




aquilino ribeiro



pindaro

segunda-feira, outubro 31, 2005

O vestígio e a aura

"Return in peace to the ocean, my love
I, too, am part of that ocean, my love"
Walt Whitman




" O vestígio é a manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar o ser que o deixou.
A aura é a manifestação de uma lonjura, por mais próximo que possa estar aquilo que a evoca.
Com o vestígio apoderamo-nos da coisa, com a aura é ela que é senhora de nós."


walter benjamin


pindaro

Descompassada besta

"Nas polémicas camilianas de móbil religioso ou erudito o factor pitoresco do adversário prime sobre as razoadas razões que pudesse haver contra o próprio. E basta um trocadilho, como feito com os verbos deputar e delegar aplicados a certa atitude de um publicista brasileiro, para que Camilo conquiste abusivamente a sua galeria de leitores, muito mais empenhados em ver urna luta de galos do que em derimir a verdade entre dois contendores de boa fé. Por isso a imagem de "carvalho cerquinho" do cacete estadeado pelo escritor ficou como símbolo da sua acometividade polémica, e o grosso epíteto – "descompassada besta" – como a chave do êxito dos seus lances de dicacidade amarga."



Vitorino Nemésio
(in onesimo teotonio de almeida)


pindaro

Enfreá-los

"Tanas é um idiota piramidal.
(...)
Mas a tolice vangloriosa, mas o intono da estupidez, mas a necedade farfalhuda, mas o publicista de tamancos e arremangado à laia de carreteiro, isso nauseia, indigna e fede! Tanas...

Mas será ele Tanas este artigo do Português de 30 de Agosto?

Vamos à assinatura: – E. T. Das duas uma: É Tanas, ou É Tolo. Se é Tolo é Tanas, e se é Tanas é Tolo: logo, É TANAS."

Na sequência da polémica, Camilo chama-o "bandalho" e, a ele e aos camaradas de redacção, julga-os "três asneirões", aos quais

"(o) Nacional o mais que fará é enfreá-los, botar-lhes os cabeções, e esporeá-los de vez em quando para que a humanidade incauta lhes veja a solidez das ferraduras. "



Camilo Castelo Branco
sobre Joao Felix Rodrigues

(in Onesimo Teotónio de Almeida)


pindaro

sexta-feira, outubro 28, 2005

De beijos tão sem tento

Fogo preso



Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando
Essa luz repentina até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento, tão violento e brando.
Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando
E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento
A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento




vasco graça moura



pindaro

quarta-feira, outubro 26, 2005

Há quanto tempo?

"Ilustre paspalhão, pasmo dos orbes,
Nata da estupidez, álcool dos parvos,
De Campanhã o bardo te saúda!
Salvaste Roma, ó ganso!... se não grasnas
Piravam-se os tais paus (...)
(...)
A propósito, amigo, há quanto tempo
Conservas de escabeche a inteligência?"




Camilo Castelo Branco
(A abrir a "epístola" em verso ao Visconde de Atouguia)



pindaro

Outros sete

Sete anos de pastor Jacó servia



Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pertendia.


Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

Luis de Camões



pindaro


domingo, outubro 23, 2005

Um murmúrio imperceptível

"Um murmúrio imperceptível durante o dia, enche toda a penumbra nocturna"
Teixeira de Pascoaes




Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
E ter a cara serena.



fernando pessoa



pindaro

Portugal será

O Portugal futuro



O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do as falto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro



Ruy Belo



pindaro

sexta-feira, outubro 21, 2005

Namoram-se os Elementos

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista de que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.





luis de camões


pindaro

Imemorial


"Dos beijos ao banquete apaixonado em sonhos o amor levou-me um dia."

ascenso ferreira





Imemorial
o desejo
da pedra
despida

Impúdica
a carne
da intima
bebida

Devasso
o empenho
da boca
desenhada

Indecente
a rosa
cor-de-rosa
avermelhada




Solino

quarta-feira, outubro 19, 2005

Rosa e Limão






Lisboa



Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.




eugenio de andrade


pindaro

quinta-feira, outubro 13, 2005

Nas durezas dos amores

“Como o que ao deixar a ilha inaudita
se exalta com o sonho que se propôs
na pérola ardente que o imita.”

Carles Riba
(Salvatge cor)






Encontrava-se na situação daquele pescador de não sei que lenda árabe que, ao tentar afogar-se no meio do oceano, chega a um país submarino onde o fazem rei.

Tudo começa pela parte da ligação entre a noite e a sensualidade, e continua por aí fora nas histórias de correr fado até chegar à água, a da nossa memória, e a outra, a do mar.

A irmandade com o oceano é o sal que no-la dá.

A sua percentagem nele e em nós é a mesma, e que incessantemente assim tenha sido e que assim continuamente venha a ser é o salvo-conduto, o farol das fugidas dos ameaços de quem se governa como pode nas durezas dos amores.




Doutor Lívio

Tão tirana e desigual




Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Se alguma tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!





francisco roíz lobo





pindaro

À ostra bela

"Coração, olha o que queres
que mulheres são mulheres"

f. roíz lobo







És ruim, romã!

Onde,
no bosque de bagos rosados,
a nesga

que me leve
pela senda do teu sumo

à ostra bela,

primoroso,
e sem atravessadouros?





D. Júlio

Nostalgia

Conhecem o Diabo?

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal.

Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o corpo.

E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano.

Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce.

Tem talvez nostalgia do Céu!






eça de queirós
(o diabo)


pindaro

sábado, outubro 08, 2005

Desenhos de andar

“Há quatro coisas maiores que todas as outras: mulheres e cavalos, poder e guerra.”
Rudyard Kipling





Aqui está minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor e, de outro,
esquecimento.



cecília meireles



pindaro

Do aprendizado

"Deus é existirmos e isto não ser tudo"
bernardo soares
(livro do desassossego)






"A humildade é o princípio do aprendizado, e sobre ela, muita coisa tendo sido escrita, as três seguintes, de modo principal, dizem respeito ao estudante.

A primeira é que não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura.

A segunda é que não se envergonhe de aprender de ninguém.

A terceira é que, quando tiver alcançado a ciência, não despreze aos demais.

Muitos se enganaram por quererem parecer sábios antes do tempo, pois com isto envergonharam-se de aprender dos demais o que ignoravam.

Tu, porém meu filho, aprende de todos de boa vontade aquilo que desconheces.

Serás mais sábio do que todos, se quiseres aprender de todos.

Nenhuma ciência, portanto, tenhas como vil, porque toda ciência é boa. Nenhuma Escritura, ou pelo menos, nenhuma Lei desprezes, se estiver à disposição.

Se nada lucrares, também nada terás perdido.

Diz, de facto, o Apóstolo: “Omnia legentes, quae bona sunt tenentes”

O bom estudante deve ser humilde e manso, inteiramente alheio aos cuidados do mundo e às tentações dos prazeres, e solícito em aprender de boa vontade de todos.

Nunca presuma de sua ciência; não queira parecer douto, mas sê-lo; busque os ditos dos sábios, e procure ardentemente ter sempre os seus vultos diante dos olhos da mente, como um espelho."




hugo de são vitor




pindaro

Magnetismo

"A arte de regular as maneiras por meio de uma combinação feita entre a nossa organização e a nossa vontade é uma das mais importantes coisas que se devem conhecer.

Há homens que, sem plausivelmente sabermos porquê, alcançam tudo quanto querem nas pretensões do Estado, nas transacções comerciais, nas atenções das salas.

Emerson, o célebre escritor americano, observando que os indivíduos que mais frequentemente obtêm esses triunfos não são os mais inteligentes, nem os mais belos, nem os mais honrados, averigua com muita lógica que o sucesso das nossas aspirações na sociedade depende principalmente do nosso porte.

Por tal razão, Emerson define as maneiras - talento de dominar.

No modo como nós nos vestimos, como falamos, como olhamos, como nos movemos, há efectivamente uma espécie de indefinido magnetismo a cuja influência não pode furtar-se quem se lhe sujeita."




Ramalho Ortigão
As farpas- tomo VIII- Junho de 1871


pindaro

Polpuda que és






Que polpuda que és
quando
ao bosque

arrimam
os tangos de verão


que riçam a penugem
e
rasam as marés
das fomes e das sedes

com os adornos
do sumo




solino

Pela densidade folhuda do parreiral





A ramada suspensa em esteios de pedra formava o enfolhado docel do tanque. Pendiam já dourados os enormes cachos de ferral. Alguma folha escarlate, outra amarelecida pelo queimar do sol, realçavam, variegando as cores, a abóbada afestoada. Nos rebordos da bica rústica por onde a água derivava, grogolejando nas algas, verdejavam vegetações filamentosas pendentes como meadas de esmeraldas, e miniaturas de relvedos, onde os insectos se pousavam n'um ruflar deleitoso de asas, no regalo da frescura, oscilando as antenas.

Duas galinhas com as suas ninhadas esgaravatavam na leiva húmida, a cacarejarem a cada grânulo ou insecto que bicavam, e deixavam cair e retomavam de novo, com umas negaças, para ensinar os pintainhos que se disputavam a posse do cibato em corrimaças impetuosas azoratadas.

De vez em quando, à tona d'água, rente com o combro de cantaria afofado de musgos verdes, emergia a cabeça glauca de uma rã que pinchava para a alfombra, coaxava o seu diálogo interrompido com outra rã do beiral fronteiro, e ambas a um tempo, mergulhavam de pincho, quando Cacilda batia a roupa na pedra esconsa do lavadouro.

Estava o sol a pino; mas pela densidade folhuda do parreiral apenas coavam umas lucilações a laminarem tremulamente a água ondulosa e escumada de sabão.




camilo castelo branco
(cacilda)



pindaro

Máscara

"Escolher a própria máscara é o primeiro gesto volumtário do humano."
clarice lispector






Platão escrevia que víamos no rosto de quem amamos a imagem do deus que nos governa.

Convém acrescentar que também nele apercebemos os nossos demónios pessoais...





solino

sexta-feira, outubro 07, 2005

Cravação fechada

“A esmeralda é uma pedra frágil que se quebra com facilidade, como a fé”
Catarina de Médicis






A regra só pode ser esta:
os lapidários lapidarão e os ourives engastarão.

E elas, as de cabelo asa de corvo e olhos pretos, usem, de primazia, na cercadura dos brincos a prata branca.

Com vistas para o realce.

Ponham, por cima, camisa aberta e cor de canela, que entraves raianos não molham beijos,

sabendo que reais são os méis e adulações no estreito das embocaduras, maiormente da do fremente limo voraz.

E, por cima de tudo, a destapar as pernas quase todas, que a seda preta, ávida de regard, mostre a sua solidão furtiva entre a saia e a carne nua.

Marcando territórios, os lobos florescem.





Doutor Lívio

quinta-feira, outubro 06, 2005

Fogo fixo na cúpula









Em plena jornada de pensamento, com vista ao sufrágio, nada virá tão a pêlo como deitar mão de um plano geral de alumiamento e balizagem.

E, do mesmo passo, recordar que em 1589, alguns meses após a derrota da “invencível armada”, o corsário e almirante inglês Sir Francis Drake fez-se ao mar a partir de Plymouth rumo à Península Ibérica.

O que aquilo tem a ver com isto ver-se-á.

Em reflexão, não se perca de vista que a poesia corresponde à música, pois aquela assenta nos ritmos, esta nos sons, e ambas na harmonia. Assim vá de se dar sequiosamente a uma e a outra, como quem, de tão ávido, parece querer matar uma sede de séculos.
Ajuda muito, porque apazigua e, conciliados os génios, vê-se mais claro.

Um pouco como o vinho, segundo nos conta uma antiga cançoneta italiana bem envelhecida:
“Chi ha la rabbia al cuore
si metta al tavolino
con un bichier di vino
la rabbia passerá.”

Rolando a mareagem, começa a atingir-se a afinidade do isto e do aquilo:

É que ver mais claro, no fundo o que importa, ganha muito boa achega com
luz de porto fixa com clarões.
Mormente em estado de atmosfera brumosa.

Aqui reentra o corsário.

Surpreende Peniche, em Maio, numa manhã de sexta-feira.
Reza a história que o jovem Conde de Essex arriscou afogar-se na praia de Nossa Senhora da Consolação para ser o primeiro a tocar terra.
Dias depois desembarca Sir Francis em Cascais, após o que, para o tudo ou nada, vai-se à entrada do Tejo a duelo com D. Alonso de Bazán, que era irmão do primeiro Marquês de Santa Cruz.

A empresa, como se sabe, falhou com um fragor extraordinário.

Ao tornar desordenado à sua terra e às iras da rainha, o soberbo corsário levou, de volta, um passageiro que com ele fora de viagem: D. António Prior do Crato.


Com música, poesia e luzes de porto, fica boa a reflexão.
E nos copos, com o Sir Francis Drake, o Conde de Essex, o D. Alonso de Bazán e o D. António Prior do Crato, fica ainda melhor.





D. Julio

terça-feira, outubro 04, 2005

A beleza do rumor entranhado

“ O desprazer é já menos, porque toda a cousa que se faz, de que nos não praz, podemos dizer com verdade que nos despraz dela, ainda que seja tão ligeira que não sintamos.”
D. Duarte (Leal Conselheiro)





D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Almeida Garret e Pascoaes, entre outros antigos vultos, tinham a palavra saudade ( soidade para D. Dinis) como um exclusivo pátrio, um termo só da nossa terra, intraduzível.

Dizia mesmo o Visconde João Baptista que “... o sentimento por ele representado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja um vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa...”

Só mais à frente, século passado adentro, o dogma quase mágico foi removido.

De facto, outras nações têm para a saudade um termo só seu: o galego tem soledades ou soedades; o catalão, anyoransa ou anyoramento; o italiano, desio ou disio; o romeno doru ou dor; o sueco, saknad; o dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor.

O filólogo Manuel de Melo abriu o capote a este bicho, com luzimento, em Notas Lexicológicas.

Falando das canções melancólicas dos romenos, Cratiunesco volteava sobre doru:
“Ce mot semble venir du mot latin desiderium, dont il exprime tous les nuances – le regret d´un bien perdu, le chagrin que cause son absence, l´ésperance de le recouvrer, le désir d´un bonheur, que l´on ne connait point encore et l´ivresse que en accompagne la posséssion.”

E, em francês, dava-se ao doru do poeta Alecandri o sentido de “désir mêlé de regret”.

Vamos, ainda, ao Purgatorio, com Dante:

“Era giá l´ora che volge il disio
Ai naviganti, e intenerisci il cuore
Lo di che han ai dolci amici addio;

E che lo nuovo peregrin d´amore
Punge, se ode aquilla di lontano,
Che peja il giorno pianger che si more”

( “C´était déja l´heure qui réveille les regrets
des navigateurs et attendrit leur âmme”, etc.
-Fiorentino)

Saudade, essa palavra para uma “mimosa paixão da alma”
(D. Francisco Manuel de Melo), não é só nossa.
E é de folgar que assim seja.
O contrário seria uma desordenança
Das grandes.



Leonardo

segunda-feira, outubro 03, 2005

Duende

“Son mis amores reales”
La devise de D. Juan de Tassis y Peralta, Conde de Villamediana
(“Chevalier de l´arène qui affronttait à pied les taureaux simplement pour qu´étincelle la devise que le mena à mort”
– L. M. Dominguin)





O duende, como todo o bom bailador da esquivança, tem pergaminhos difíceis.
O seu campo é um território de labirintos e galerias, para o correr vai-se melhor com explorador. Espanhol e poeta: Federico Garcia Lorca.

O duende, Lorca vai abrindo, é um poder não uma atitude, é uma luta não um conceito, e nenhuma emoção é possível sem a sua mediação.

“Olé! Isto tem duende!”, bradou o bailarino cigano La Malana ao ouvir Brailowski tocar um fragmento de Bach. Agarrara o “é da coisa”, como Goethe quando, falando de Paganini, falava de “um poder misterioso que todos podem sentir e nenhuma filosofia pode explicar.”

O duende fantasia nas interioridades escondidas e, no dizer do explorador, encontra-se “durmiendo en las últimas habitationes de la sangre”.

Ama as fronteiras e as feridas, e aproxima-se dos lugares onde as formas se fundem num anseio superior às suas expressões visíveis. Ser misterioso, meio diabólico meio angélico – os dois ao mesmo tempo – costuma inspirar os que nele crêem.

A sua funda vocação, acrescentaria Henri Thoreau, é a de “sugar o tutano do dia.”

Encanto da região do fogo, demónio furioso e devorador, irmão dos ventos carregados de areia, o duende baila com particular ligeireza por dentro dos cantadores ciganos, dos toureiros e dos poetas.

É ver João Cabral de Mello Neto:



(...)
Mas eu vi Manuel Rodriguez
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo
mais mineral e desperto,

(...)
o que à tragédia deu número,
à vertigem geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodriguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida.

E como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor
sem poetizar seu poema.”




“Sueño de una sombra /o sombra de un sueño”, dizia José Bergamin, mas o duende, digo eu, tem um outro dom que é o da impermanência, a arte de dizer adeus com elegância.





Doutor Lívio

sexta-feira, setembro 30, 2005

Louvor da língua aprazível

“...e, levantando-se ele, se despediram todos com muita cortesia, deixando ao senhor da casa magoado de se acabar tão depressa a conversação; que quem sabe estimar a que é tão boa, tem sentimento das horas que dela perde.”
F.R.L





(...)

- Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) pelas cousas da nossa Pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e da escritura.

Para falar é engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com um certo movimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias.

A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência de gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala.
Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade.

E se à língua Hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem os seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.

(...)



Francisco Roíz Lobo
"Corte na Aldeia"



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